COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE DIREITO
CANÔNICO PIO BENEDITINO (1917)
Tomo IV
Pelo Doutor Marcelino Cabreros de Anta,
C.M.F.
BIBLIOTECA DE AUTORES CRISTÃOS – BAC
– MADRI – MCMLXIII (1963)
Terceira Parte
Das penas contra cada um dos delitos
Título XI – Dos delitos contra a fé e a unidade da Igreja
480. Nesta terceira parte
encontramos uma exposição sistemática e científica, realizada pela primeira vez
no ordenamento canônico, das penas vigentes na Igreja Latina. Podem
distinguir-se nela duas partes claramente distintas: os títulos 11-15 contém
delitos comuns a todos os fiéis, e os títulos 16-19 delitos próprios de
clérigos ou de religiosos. Dentro de cada parte se observa que os delitos estão
colocados, em geral, em ordem de gravidade descendente, no qual a obra dos
codificadores está claramente inspirada pelo livro de Hollweck Die kirchlicken
Strafgesetze. A ordem da exposição é a seguinte:
I.
Delitos contra a fé e a unidade da Igreja.
II.
Delitos contra a religião.
III.
Delitos contra as autoridades, pessoas e coisas
eclesiásticas.
IV.
Delitos contra a vida, a liberdade, a propriedade, a boa
fama e os bons costumes.
V.
Crime de falsidade.
VI.
Delitos na administração e recepção de ordens e outros
Sacramentos.
VII.
Delitos contra as obrigações próprias do estado
clerical ou religioso.
VIII.
Delitos na colação, recepção e abandono das dignidades,
ofícios e benefícios eclesiásticos.
IX.
Abusos de potestade ou ofício eclesiástico.
481. A matéria é abundantíssima e
sua exposição completa ultrapassaria muito os limites deste livro. Por isso
nosso comentário será desigual, pois temos cuidado especialmente dos delitos
que por um ou outro motivo nos parece que exigem atenção; em outros, o comentário
é breve e ainda brevíssimo.
Para evitar
repetições nos comentários que seguem, recordaremos aqui que o intérprete deve
ter em conta as normas penais gerais expostas até aqui; destacaremos por sua
frequentíssima aplicação as seguintes:
a) O princípio de interpretação estrita
da lei penal (can.19 e 2219).
b) A atenção à
interpretação doutrinal do direito antigo, sobretudo tratando-se de delitos
que antes estavam na Const. Aposticae
Sedis (Pio IX), donde precedem grande
parte das censuras automáticas codificadas (can.6 n.2-4).
c) As normas do can.2229 § 2 nos
delitos que requerem imputabilidade plena.
d) Nas penas vindicativas preceptivas, a possibilidade da
condenação condicionada (can.2288), da correção judicial em lugar do juízo
criminal (can.1947ss) e os poderes discricionais do juiz para diminuir,
suspender ou suprimir a pena (can.2223).
e) Nas penas automáticas, se o delito é
formal, se consuma ao realizar-se o ato proibido ou omitir-se o preceituado; se
é material, ao verificar-se o resultado que a lei pretende evitar (supra,
n.304).
f) A punibilidade dos codelinquentes e
dos autores de tentativa e de frustração é aplicável a todos os delitos que
admitem esses modos de delinquir, ainda que na lei não se mencionem.
Os delitos contra a fé e a unidade da Igreja
482. Delitos de lesa Igreja. – Em todas as legislações penais ocupam
lugar preferencial as leis encaminhadas a proteger o Estado, sua integridade e
sua segurança, pois o ataque a estes interesses fundamentais da organização
social destruiria os fundamentos do ordenamento jurídico. Também o Código de Direito
Canônico cede o primeiro lugar desta terceira parte aos delitos contra a Igreja,
ainda que esta seja indefectível pela promessa de seu divino Fundador. Porque a
preocupação suprema de todo ordenamento jurídico é a conservação da instituição
a que serve o dito ordenamento. E ainda que todos os delitos desta terceira
parte do livro V sejam “contra a Igreja” em sentido lato, especificamente só se
podem chamar assim os crimes que atentam à constituição divina da Igreja, a sua
liberdade e a seus direitos. Deles tratam-se os títulos 11, 12 e 13, que sancionam
delitos contra a fé e a unidade da Igreja, contra a Religião e contra as
autoridades, pessoas e coisas eclesiásticas, respectivamente. A primeira classe,
de que fala nosso título 11, pertencem os atos de rebeldia contra as verdades
reveladas, que constituem o depósito mais apreciado da Igreja e a razão de sua
existência: tais são a apostasia, heresia e cisma (can.2314-17), o uso de livros
proibidos (can.2318) e a comunicação com acatólicos em coisas sagradas
(can.2319).
I.
APOSTASIA, HERESIA, CISMA
Canon 2314
§ 1 . Todos
os apóstatas da fé cristã e todos e cada um dos hereges ou cismáticos:
1º Incorrem ipso
facto em excomunhão;
2º Se depois de admoestados não
se emendam, devem ser privados de todo benefício, dignidade, pensão, ofício ou
outro cargo que tiverem na Igreja, que sejam declarados infames, e aos
clérigos, após a admoestação repetida, que sejam depostos;
3 º Se houverem dado o seu nome a
uma seita não católica ou tiverem aderido a ela publicamente, são ipso facto infames e, tendo em conta a
prescrição do cânon 188, n. 4, que os clérigos, depois de uma advertência
ineficaz, devem ser degradados.
§ 2 . Está reservada de modo especial à
Sé Apóstólica a absolução da excomunhão, tratada no § 1, quando haja de dar-se no foro
da consciência. Entretanto, se o delito de apostasia, heresia ou cisma houver
sido levado de qualquer forma, ainda que seja por confissão voluntária, ao foro
externo do Ordinário do lugar, pode este, mas não seu Vigário Geral sem mandato
especial, absolver no foro externo ao arrependido, em virtude de sua autoridade
ordinária, a prévia abjuração, feita
juridicamente e observando tudo o que no direito deve observar-se; e ao que
nesta forma tiver sido absolvido, pode depois qualquer confessor absolvê-lo do
pecado no foro da consciência. Tem-se
por feita juridicamente a abjuração quando se faz ante ao mesmo
Ordinário do lugar ou seu delegado e, ao menos, ante duas testemunhas.
No can.2314 são assinalados três
delitos.
483. A. Heresia (airesis = eleição,
implica a idéia de abraçar uma doutrina arbitrariamente). – Consiste em negar
com pertinácia uma verdade da fé ou em duvidar dela com obstinação (“Error hominis baptizati in intellectu
voluntario contra aliquem articulum fidei cum pertinacia coniunctus”- Santo
Tomás, Summa Theol.2-2,q.II,I.). São verdades de fé, as que a Igreja propõe
como tais, tanto por um ato de definição solene, tanto em sua atividade
magisterial e ordinária (can.1323). Assinalar em concreto quais sejam estas
verdades, corresponde à teologia. O delito se comete negando ou duvidando com
pertinácia (can.1325§2), é dizer, com consciência de que o que se nega ou duvida se
expressa contrário a uma verdade de fé. O delito é formal, sem frustração possível,
e consuma-se no momento em que a negação ou a dúvida ficam externamente
manifestadas. Tampouco cabe tentativa, porque, se os atos preparatórios não
manifestam sentido herético, não ficam satisfeitas as condições do can.2212 § I (cf.
supra), e se o manifestam, o crime está consumado.
No delito cabem duas figuras: a
heresia simples e a heresia com adesão a seita acatólica. Segundo a lei, esta
adesão faz-se de duas maneiras; pelo fato de inscrever-se nela como sócio ou, ainda
sem inscrição, pela participação pública nas reuniões e atos cultuais da seita;
ou por outros atos públicos que inequivocamente demonstrem adesão; por exemplo,
fazendo a propaganda dela. A seita acatólica da qual aqui falamos é uma associação
religiosa não católica. Os que se inscrevem
e, associações ou seitas atéias devem
ser considerados para todos os efeitos como aderentes a seitas acatólicas:
alguns consideram que fala-se neste caso dos que se afiliam ao partido
comunista, por ser associação que professa o ateísmo (infra, n.511). As seitas
não religiosas (maçonaria, anarquismo, etc.) não estão aludidas pela lei no
conceito de seita acatólica.
484. Penas contra os
hereges.
I.º Excomunhão automática. -
Esta excomunhão oferece uma notável singularidade, porque para a absolução
no foro interno fica reservada especialmente à Santa Sé, e no foro externo, ao
Ordinário local, o qual a outorga prévia
abjuração. Sempre que o delito seja levado ao foro do Ordinário, incluso
por confissão espontânea do réu oculto, aquele pode usar de suas faculdades sem
necessidade de recorrer à Santa Sé, em caso contrário, se o delito não é
público, ou ainda sendo, se não houve escândalo, pode bastar a absolução no
foro interno, segundo as regras que já conhecemos (supra, can.2251 e 2254).
2.º A abjuração. – Não devem fazê-la os impúberes (can.2230). Enquanto aos
que se convertem da heresia, se não estão batizados validamente, não incorreram
na censura e, portanto, não há mais que batizá-los. Se seu batismo foi válido,
devem abjurar e receber a absolução, depois do qual podem receber a absolução
sacramental de qualquer confessor. Se o batismo for duvidoso, a ordem da
reconciliação é: abjuração, batismo condicionado, confissão sacramental e
absolução condicionada.
Enquanto ao procedimento da
abjuração, o legislador explica que deve fazer-se juridicamente ante o Ordinário local
ou seu delegado e duas testemunhas, “observando o que deve observar-se”,
cláusula na qual a lei alude às inquisições prévias para determinar a necessidade
da abjuração. O rito está descrito no Pontifical Romano; o Santo Ofício, en
1859, promulgou uma fórmula mais breve para quando o que recebe a abjuração é um
sacerdote delegado. O Ordinário pode utilizar um rito mais abreviado; a tendência
atual é suprimir os ritos e as frases mortificantes, e contentar-se com o
elemento positivo da profissão de fé católica.
3.º Penas “ferendae sententiae”. – Ademais da excomunhão explicada até aqui, os
hereges devem ser privados de todo cargo ou pensão que tenham na Igreja, devem
ser declarados infames (infâmia de direito) e se são clérigos, devem ser depostos.
Trata-se de penas vindicativas preceptivas, mas antes de impô-las há que admoestar
ao herege para que se converta e, tratando-se de depor ao clérigo, é necessária
uma dupla admoestação. Somente quando as admoestações resultam inúteis se poderá
proceder contra o herege, seguindo as normas processuais que correspondam à
pena que se haja de impôr.
4.º Penas especiais contra a segunda figura. – Como temos dito, a
segunda figura consiste na heresia agravada com adesão à seita acatólica. As
penas são: para todo delinquente, infâmia automática, e para os clérigos,
degradação preceptiva (observando as regras dadas: supra, can.2305 §2), com perda automática dos ofícios (can.188 n.4).
485. B. Delitos de apostasia
e de cisma. – A palavra apostasia significa separação ou alejamento (grego.
apo-stasia). Apóstata é o que renega da
fé de uma maneira total; o herege nega ou duvida de algum dos artigos da fé, mas
o apóstata rechaça a fé em todo seu conjunto, de modo que, embora admitindo
algumas ou ainda muitas das verdades que são de fé, ele não as aceita como de fé,
senão que rechaça totalmente a fé.
O cisma (greg. Sjisma = excisão,
divisão) consiste em desvincular-se da unidade da Igreja. A heresia e a
apostasia são delitos que diretamente se opõem à fé: o cisma, ainda quando
implica uma negação prática do Primado do Romano Pontífice, diretamente não
ataca às verdades da fé, mas sim ao vínculo jurídico e de caridade que une os
fiéis entre si e com o Romano Pontífice. Por isso o delito de cisma pode-se
cometer de duas maneiras, que constituem outras tantas figuras delitivas: ou recusando
submeter-se à autoridade do Papa como cabeça visível da Igreja, ou negando-se a
ter comunicação religiosa com os membros da Igreja submetidos ao Papa,
precisamente por que o são. Estes dois crimes devem ser externos, como temos dito
da heresia, e podem agravar-se, constituindo figura especial quando o apóstata
ou o cismático se afiliam a uma seita. Tratando-se de apóstatas, a seita pode não
ser cristã; por exemplo, o judaísmo ou o maometismo.
As penas são as mesmas que para a heresia.
II - DELITOS PRÓXIMOS A HERESIA
Canon 2315
O
suspeito de heresia, que admoestado não faz desaparecer a causa da suspeita,
deve apartar-se dos atos legítimos, e se for clérigo, deve ademais ser suspenso
a divinis, uma vez repetida
inutilmente a admoestação; e se o suspeito de heresia não emenda-se no prazo de
seis meses cumpridos depois de haver incorrido na pena, deve ser considerado
como herege e sujeito às penas dos hereges.
Canon 2316
É
suspeito de heresia aquele que espontaneamente e intencionalmente ajuda de
qualquer modo à propagação da heresia ou participa in divinis com os hereges, contra o que prescreve o Canon n.1258.
486. Suspeita de heresia (can. 2315 e 2316). – A suspeita de heresia
não é um delito nem uma pena, senão uma situação jurídica resultante do
cometimento de certos atos ilícitos, parte dos quais estão assinalados
expressamente nas leis penais e parte estão englobados na formulação geral do
can. 2316, cuja determinação concreta pertence ao juiz ou ao superior. Os atos
concretos dos quais resulta suspeita de heresia são: o participar ativamente nos
ritos religiosos acatólicos (can. 2316 junto com can.1258 § I); o contrair
matrimônio com pacto de educar a prole fora da Igreja (can.2319 § 2); a profanação
da Eucaristia (can.2320); a apelação ao Concilio Universal dos atos do
Pontífice reinante (can.2332); a perseverança obstinada na excomunhão durante um
ano (can.2340 § 1); a simonia na administração de sacramentos (can.2371). Ademais
destes atos que automaticamente produzem suspeita de heresia, o juiz ou o
superior pode determinar a existência dessa suspeita sempre que alguém realize
atos que favoreçam a difusão da heresia, tais como ajuda material, propaganda
oral ou escrita, louvores do livro herético, etc. Os termos da lei são amplos e
permitem ao superior acudir a todo sintoma de perigo, mediante a declaração de
suspeita de heresia.
O suspeito de heresia recebe uma
admoestação canônica pela qual é convidado a suprimir a causa da suspeita, desistindo
de seus atos ou fazendo por apagar seus delitos, se este é o caso, e sempre
reparando o escândalo. A recusa do
admoestado que nega-se a suprimir a causa da suspeita constitui o delito
figurado no can.2315. O delito admite três graus para os clérigos e dois para
os leigos.
PENALIDADE: a) A recusa simples indicada penaliza-se com proibição dos atos
legítimos eclesiásticos, que deve impor-se obrigatoriamente; b) tratando-se de clérigos, faz-se outra admoestação; se também esta
resultar-se inútil, teremos o segundo grau do delito, cuja pena é suspensão
medicinal preceptiva a divinis; c) o
terceiro grau (segundo para os não clérigos) realiza-se automaticamente pelo
transcurso de seis meses sem emenda. O tempo conta-se, para os leigos, à partir
da proibição dos atos legítimos, e para os clérigos, à partir da data da suspensão.
O delinquente neste terceiro grau tem a consideração jurídica de herege para
todos os efeitos penais (supra, canon 2314).
Canon 2317
Os
que obstinadamente ensinam ou defendem, em público ou em privado, uma doutrina
que certamente tenha sido condenada pela Sé Apostólica ou por algum Concílio
Geral, ainda que não tenha sido como formalmente herética, devem ser apartados
do ministério da pregação da palavra de Deus, de ouvir confissões sacramentais
e de todo cargo docente, salvas as demais penas que possa haver decretado a
sentença de condenação, o que o Ordinário, depois da admoestação, houver
considerado necessárias para reparar o escândalo.
487. Defesa de doutrina condenada (can.2317). – Trata-se aqui de doutrina
condenada com uma qualificação que não chegue a herética (pois neste caso seria
de aplicação o can.2314) ou simplesmente reprovada sem qualificação alguma. Doutrina
é toda afirmação teórica referente à fé ou a costumes; não tem consideração de
doutrina as normas práticas, os ensaios de oportunidade, as afirmações
históricas.
O delito reveste duas figuras,
que são ensinar ou defender; em qualquer uma delas exige-se pertinácia na
conduta delitiva (can.2229 § 2). O sentido óbvio dessas palavras exime
de caráter delitivo a outras condutas de matizes distintas do ensino ou a
defesa. Ensinar é manifestar uma doutrina à quem a ignora, com sugestão
implícita para que seja aceita; não é, portanto, a mera expressão de uma opinião
própria, a demonstração de que tal doutrina não está condenada, etc. Defender é
apoiar com razões e argumentos, falsos, desde logo, posto que tratam-se de erros.
PENALIDADE: I.º Penas preceptivas. São a proibição de
pregar, a de ouvir confissões sacramentais e a de ensinar qualquer matéria nas
escolas oficiais da Igreja e também nas escolas civis, tratando-se de assuntos
pertinentes à ciência sagrada ou relacionados com ela; assim parece deduzir-se
do can.1381§I-3.
Ademais, se o documento pontifício pelo qual condena-se uma doutrina contém
penas preceptivas contra os que a ensinam ou defendam, essas penas tem seu
valor à margem das do Código.
2.º Penas Facultativas. Se o Ordinário,
local ou religioso, estimar oportuno, pode adicionar às penas do Código outras
facultativas para reparar o escândalo; para impô-las deve utilizar previamente a
admoestação canônica.
Título do Original:
COMENTARIOS AL CODIGO DE DERECHO CANONICO
Con el texto legal latino y castellano
BAC – BIBLIOTECA DE AUTORES CRISTIANOS – MADRID –
MCMLXIII
Tomo IV – Cánones I999 – 2414 – Páginas 454-459
(Canones 2314, 2315, 2316 e 2317)
Pelos Doutores: Marcelino Cabreros de Anta, C.M.F.
Arturo
Alonso Lobo, O. P.
Sabino
Alonso Moran, O.P.
Prólogo do Exmo. E Revmo. + Sr. Dr. Fr. Francisco Barbado Viejo, Bispo
de Salamanca.
Imprimatur: + Fr. Franciscus, O.P., Episcopus
Salmantinus
Salmanticae, die 10 ianuarii 1962
2 comentários:
Excelente artigo, caríssimo! Vou divulgar!
Muito bom MESMO....
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